Terreiro de Umbanda

Firmina do Rosário

Coluna Ubuntu

Dia da cozinheira

Dia da cozinheira

Cozinhar é mais do que preparar alimentos, é um gesto de cuidado, uma forma de expressão e, muitas vezes, um elo entre memórias e afetos. Entre aromas e sabores, quem cozinha transforma ingredientes simples em momentos de partilha, conforto e conexão. É um ritual que alimenta o corpo e aquece a alma. – Laura Esquivel (Como água para chocolate, 1989).

A profissão de cozinheira no Brasil tem raízes profundas na história colonial, surgindo a partir da organização das casas grandes dos engenhos, onde as mulheres negras escravizadas desempenhavam o papel central na cozinha. Essas cozinheiras eram responsáveis por alimentar tanto os senhores da casa grande quanto os escravizados da senzala e isso as colocava numa posição estratégica, embora subordinada.

Na casa grande, a cozinheira era muitas vezes vista como uma figura de confiança, pois tinha acesso direto ao alimento da família dos senhores algo que, paradoxalmente, conferia poder e vigilância. Era ela quem preparava pratos que misturavam ingredientes africanos, indígenas e europeus, criando a base do que hoje reconhecemos como culinária brasileira.

Na senzala, a mesma cozinheira ou outras mulheres escravizadas, preparavam alimentos simples, geralmente com sobras ou ingredientes menos nobres, mas sempre com criatividade e resistência, transformando a escassez em sustento. A cozinha era, assim, um lugar de dor, mas também de transmissão cultural, de afeto e resistência silenciosa.

Um dos principais autores que tratam da figura da cozinheira no contexto da escravidão é Gilberto Freyre, em sua obra clássica Casa-Grande & Senzala (1933). Ele destaca como as mulheres negras, especialmente as cozinheiras, tinham um papel central não só na alimentação, mas também na formação da cultura brasileira, pela mistura de costumes, sabores e saberes. Freyre mostra que, embora subjugadas, essas mulheres exerciam influência simbólica e afetiva, inclusive criando laços com as crianças da casa grande, ensinando receitas, cantigas, modos de fazer. A cozinha era, portanto, um dos primeiros espaços de resistência e transmissão da herança africana.

“As negras de cozinha foram as grandes responsáveis pela criação de uma culinária brasileira, mestiça nos ingredientes e nos temperos. Muitas vezes eram elas que mandavam na casa.” — Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala.

Cozinheira Ritualística.

Iabacé (ou Iyà Bà Sé no iorubá) significa, literalmente, “mãe que sabe preparar ”, e está tradicionalmente associado à função da cozinheira ritualística dentro dos terreiros de Candomblé. Essa função também aparece na Umbanda, especialmente nas casas com forte influência da nação Ketu ou Jeje-Nagô.

Na Umbanda, embora a função de cozinhar para os orixás também exista, o papel da iabacé não é tão estruturado nem ritualizado como no Candomblé. No entanto, em terreiros de Umbanda que seguem linhas mais tradicionais ou influenciadas pelo Candomblé, essa função pode aparecer com adaptações. Geralmente, a preparação de alimentos ritualísticos, como padês, ebós ou comidas de firmeza, é confiada a alguém de confiança e com conhecimento dos fundamentos, ainda que nem sempre haja a formalização do título de iabacé.

No terreiro Firmina do Rosário temos a influência da nação Ketu.

Fundamentos da Nação Ketu

A nação Ketu é uma das mais tradicionais do Candomblé e tem origem no povo yorubá, que vive principalmente na Nigéria. Seus rituais são voltados ao culto dos Orixás, divindades ligadas à natureza e aos elementos. Os fundamentos da Ketu incluem o toque dos atabaques (alujá), o uso da língua yorubá nas cantigas, o culto às folhas sagradas (èwé) e a forte hierarquia espiritual dentro do terreiro. Cada Orixá possui cores, alimentos, ritmos e rituais próprios, e tudo é feito com muito respeito aos ciclos da natureza e ao axé (força vital).

Referência: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2006; PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: Orixás na Alma Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; SILVA, Vagner Gonçalves da. Orixás da Metrópole. São Paulo: EDUSP, 1995; PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Relato de uma alma cozinheira

“Fio… eu sempre trabalhei na cozinha. Desde novinha, foi essa a função que me deram, cozinhar pro branco e pro negro. Quando meu papai era vivo, ele não deixava que eu ficasse junto com os negros, mas foi ele mesmo quem me apresentou a uma preta velha chamada Cambinda. Foi ela quem me ensinou tudo que sei: a cozinhar com alma e a mexer com as ervas. Ela dizia assim, com aquele jeito dela: ”A comida cura, essa menina.” E não é que curou mesmo? Hoje, no espiritual, a gente trabalha juntinha de novo.

Naquela época, eu tinha o hábito de pegar comida escondida e levar pra senzala. Era meu jeito de cuidar do meu povo. Mas isso me custou caro… apanhei muitas vezes da mulher do meu papai por causa disso. Quando ele morreu, não demorou: me venderam rápido. Eu era mestiça, tinha olho claro, cintura fina, era bonita, sabia ler e escrever… e dominava como ninguém a cozinha do branco e do preto, tudo graças à minha mãe de coração, Cambinda.

Depois que papai partiu, eu conheci o pior lado do ser humano. As surras ficaram mais fortes, mais cruéis. Mas eu não podia desistir. Eu tinha que continuar lutando pelo meu povo e a única arma que eu conhecia era o acolhimento: comida quente, palavra boa, um unguento pra aliviar a dor.

Apanhei tanto, fio… que no fim da minha vida, meu corpo já tava todo quebrado. Mas minha alma, não. Ela seguiu firme, porque sabia que tinha cumprido sua missão. E ainda segue, firme, cozinhando, curando e acolhendo onde for preciso.”

Maria Firmina do Rosário.

Pesquisa realizada por Pai Olavo de Xangô; participação e relato de Maria Firmina do Rosário (Vó Benta, mentora espiritual).

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