Terreiro de Umbanda

Firmina do Rosário

Coluna Ubuntu

ABRAÇAR O GATO, CURAR A CRIANÇA

ABRAÇAR O GATO, CURAR A CRIANÇA

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O calendário marca o dia 4 de junho com duas datas que, à primeira vista, parecem vir de mundos distintos: o carinhoso Dia de Abraçar seu Gato, e o dolorido Dia Internacional das Crianças Inocentes Vítimas de Agressão. E o que esses dois universos poderiam ter em comum?

Para quem enxerga o mundo com os olhos da carne, talvez nada. Mas para quem vê com os olhos da alma , como propõe a Umbanda, religião de afeto, acolhimento e ancestralidade, essa coincidência de datas nos conduz à uma reflexão profunda, à escuta, à cura e à reparação.

GUARDIÃO DO INVISÍVEL

Gatos não falam. Mas sentem e ensinam a sentir. Eles se aproximam de quem sofre, se escondem de quem vibra pesado, e oferecem companhia sem invadir. O ato de abraçar um gato é um exercício de presença silenciosa, de respeito ao tempo e ao espaço do outro. O gato não pede, mas aceita. Não exige, mas acolhe.

Na espiritualidade popular, o gato é frequentemente associado à proteção energética, ao mistério, ao recolhimento necessário para curar feridas invisíveis. Em muitos terreiros, sua presença é percebida como uma espécie de ponte com o mundo espiritual, como se sua sensibilidade identificasse zonas de dor que a fala humana não alcança.

Assim como as crianças feridas, o gato não grita. Mas quando sofre, muda o comportamento, se isola, adoece e, às vezes, morre em silêncio. O paralelo aqui é: tanto os gatos quanto as crianças que sofrem agressão precisam ser vistos por dentro, e não apenas observados por fora.

INFÂNCIA FERIDA

O Dia Internacional das Crianças Inocentes Vítimas de Agressão, instituído em 1982 pela ONU, nasceu do horror diante da violência contra crianças em zonas de guerra, mas seu alcance se ampliou com o tempo. Hoje, a data se torna um marco para lembrar todas as formas de violência infantil: física, emocional, sexual, institucional. Um dia para lembrar que há corpos pequenos carregando traumas imensos.

Mas há um lugar onde essas memórias ganham voz, cor, dança e cura: os terreiros de Umbanda. Lá, se manifestam os Erês e os Exus-Mirins, entidades espirituais que expressam o arquétipo da infância, cada qual à sua maneira. E é nesse ponto que tudo começa a se entrelaçar.

Na Umbanda, os Erês são espíritos que se manifestam com alegria, espontaneidade, risos e doçura. Representam a infância sagrada, a pureza que ainda vive em cada um de nós. Seus pontos cantados são brincadeiras com alma. Mas por trás das brincadeiras, trabalham como remédio para a alma cansada, trazendo leveza onde há rigidez, esperança onde há dor.

Já os Exus-Mirins, por sua vez, são muitas vezes mal compreendidos. São arquétipos espirituais de crianças que viveram experiências duras, muitas vezes violentas, e que retornam à vida espiritual com a missão de ensinar através da irreverência. Carregam nas costas o peso de infâncias interrompidas.

UMBANDA: ABRAÇO E COLO.

A Umbanda não nega a dor. Ela a embala. E é nesse embalo que a criança ferida, aquela que ainda mora em cada adulto, ou a que ainda sofre no mundo, encontra consolo. A Umbanda não “cura” como quem apaga a dor, mas como quem dá sentido à experiência vivida, e oferece um novo lugar simbólico a ela. O que a psicologia chama de “resgate da criança interior”, a Umbanda já faz há muito tempo, através da incorporação dos Erês e da ritualização da infância como espaço sagrado.

E o que o gato tem a ver com isso?

Gatos e crianças têm algo em comum: ambos são portais de sensibilidade. Quando um gato se aproxima de alguém, isso pode ser interpretado como sinal de que há algo a ser olhado, uma dor encoberta, uma lembrança antiga, uma necessidade de afeto. Assim como os Erês e os Exus-Mirins, os gatos também “falam” de outra forma. Eles se enroscam onde há dor, se afastam quando há perturbação, se deitam onde há energia boa. Não curam com palavras, mas com presença.

No fundo, abraçar um gato é ensaiar o gesto de abraçar a dor que não conseguimos nomear. E no dia 4 de junho, talvez possamos fazer isso como ritual: um abraço que também seja oração, um carinho que também seja justiça.

Que essa data seja um lembrete de que o mundo precisa de mais colo e menos grito. De mais sensibilidade e menos violência. De mais espiritualidade que se transpõe em pequenos gestos: o abraço em um gato, o cuidado com a criança, a risada de um erê.

Na Umbanda, tudo isso é axé. E axé é aquilo que cura sem precisar ferir, que transforma sem precisar destruir.

 

 

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