25 de maio. Para muitos, é só mais um dia. Para outros, uma ferida aberta. Para mães e pais que ainda esperam a volta de seus filhos, é um eco que nunca se cala. Neste dia, o mundo lembra do Dia Internacional das Crianças Desaparecidas, uma data de luto, memória e resistência.
Estabelecida oficialmente em 1983 por iniciativa do então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, a data foi criada após o desaparecimento de Etan Patz, um menino de seis anos, em Nova York, em 1979. A tragédia de Etan marcou o início de campanhas públicas para localizar crianças desaparecidas e implementar políticas de prevenção e resposta rápida. No Brasil, a realidade é alarmante: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 40 mil crianças e adolescentes desaparecem por ano. Destas, muitas jamais são encontradas. São rostos que saem das fotografias da infância e mergulham num limbo entre o esquecimento e a esperança. A cada número, uma vida. A cada ausência, um grito.
Mas há um outro plano onde esses gritos também reverberam. Um plano que se comunica com a dor do mundo através dos símbolos, dos arquétipos e da espiritualidade. E é nesse ponto que a Umbanda, como religião de acolhimento, reconciliação e resistência, nos oferece uma chave para compreender esse lamento coletivo.
INFÂNCIA FERIDA, RISO SUBVERSIVO
Na Umbanda, Exu Mirim é, muitas vezes, mal compreendido. Não é um “diabinho travesso”, como estereotipam alguns. É uma entidade profunda, que atua na vibração da infância, não da ingenuidade, mas da sabedoria ancestral infantilizada.
São espíritos que viveram infâncias interrompidas, muitas vezes marcadas por abusos, violências e marginalizações. Crianças pobres, negras, indígenas, desaparecidas em corpos e em memórias. Muitos desses Exus Mirins foram crianças de rua, meninos de senzala, meninas silenciadas, órfãos de afeto, e sobretudo, crianças esquecidas.
Esses espíritos retornam para brincar com o sagrado. Mas a brincadeira, aqui, é linguagem de cura, denúncia e força. Quando um Exu Mirim aparece em terra, ele chacoalha estruturas. Ri do que é sério, zomba do que é opressor. Traz balas, mas também choro. Ele devolve a vida onde ela foi arrancada, e denúncia, no riso, o sistema que mata infância todo dia.
ONDE MORAM OS PEQUENOS QUE O MUNDO ESQUECEU
Se muitas vezes religiões falam de pecado e salvação, a Umbanda fala de dor e acolhimento. Fala de rua, de esquina, de beco, de praça. É no congá que o brinquedo quebrado vira instrumento sagrado. Que o guaraná e a pipoca viram oferenda e memória. Que o nome da criança desaparecida é pronunciado com fé.
As linhas de Ibeji (crianças) e de Exu Mirim são, na Umbanda, os guardiões da infância ancestral. Elas cuidam da criança interior dos vivos e da criança esquecida dos mortos. Muitas vezes, nos terreiros, se observamos com os olhos da espiritualidade atentos, veremos uma criança de colo sendo benzida enquanto, ao lado, um Exu Mirim dança. Não é coincidência. É reencontro.
Que se ofereça doces não apenas por devoção, mas por memória. Que Exu Mirim não seja apenas chamado para “alegrar gira”, mas para fazer justiça.
Porque enquanto houver uma criança desaparecida, há um Exu Mirim gritando no vento, pedindo que o mundo não se esqueça dela.
A GENTE ERA DOIS. DOIS CORAÇÕEZINHOS BATENDO JUNTINHO NA BEIRA DO MAR.
“Meu nome… bem, me chamam de Joãozinho Caolho. Eu via pouco, só de um olho, e mesmo assim via mais do que muita gente grande. Meu irmão, chamam ele de Joãozinho da Beira da Praia. Era meu espelho, meu pedaço de sombra, minha coragem. A gente corria pela areia, jogava conchinha no mar e acreditava que o mundo era só aquilo: sol, rede e amor de pai e mãe.
Naquele dia… ah, naquele dia a maré tava meio brava. Eu fui atrás de um barquinho de brinquedo que achei flutuando perto das pedras. Me perdi. Não vi mais nada, nem ele, nem nossos pais. Só o barulho do mar e o coração apertado. Gritei, mas ninguém ouviu.
Meu irmão ficou. Ele sempre ficava onde me viu por último. Sentou na beirinha da areia e esperou. Esperou muito. Esperou tanto que o sol já tinha ido dormir. Nossos pais… eles subiram no navio. Juraram que a gente tava lá. Não olharam pra trás. O mar levou eles também.
A gente morreu ali, sabe? Um na espera, outro na busca. Mas morrer é só um jeito diferente de continuar. Hoje a gente anda por essas praias, sem pressa, sem corpo, mas com saudade. Eu ainda procuro ele, e ele ainda me espera. Às vezes, uma criança sente um arrepio quando senta sozinha na areia. Às vezes, alguém escuta uma vozinha chamando no vento. É só a gente. Tentando se encontrar. Tentando lembrar o mundo que crianças também somem. E que algumas, mesmo depois, continuam amando do mesmo jeitinho de antes.”